sábado, 3 de setembro de 2011

Aborto, religião e estado - Parte 1

Uma das grandes polêmicas da atualidade é sem dúvida a questão do aborto. Alguns grupos levantam a bandeira da legalização. Fundamentam sua defesa no princípio básico de que a mulher tem todo o direito sobre o seu corpo e, portanto, deve ter também o direito de decidir quanto a abortar ou não, independentemente do fato de ter em seu ventre uma vida, seja ela em seus momentos iniciais, isto é, logo após a concepção, ou mesmo em estágios mais avançados de desenvolvimento.

Há aqueles que defendem o aborto em situações extremas, como são os casos de estupro ou de graves doenças incuráveis ou de deformações congênitas, mesmo que haja possibilidade de vida, ainda que apenas vegetativa. Nesse último caso pode-se citar, por exemplo, a anencefalia, que é caracterizada pela malformação do cérebro ou até mesmo a falta deste.

Há ainda os que são contrários ao aborto em quaisquer situações. Dentre esses, alguns tomam a Bíblia como base de suas convicções.

O aborto, no entanto, é uma dura realidade e, como diz a lenda, não podemos enterrar a cabeça na areia como o avestruz e ficar alheios aos problemas ao nosso redor. Muitas mulheres pobres fazem abortos clandestinos e morrem. As ricas, não, pois têm uma melhor assistência médica. Além disso, não podemos tratá-lo como dogma religioso.

A priori, eu sou contra o aborto, não porque a Bíblia o seja, aliás, com exceção de uma única vez em que toca no assunto, a Bíblia sequer se refere ao tema. As pessoas pinçam versículos e fazem sua interpretação para combater o aborto. O único texto que se refere claramente ao tema está em Ex. 21:22-25. É lógico que se trata de aborto acidental e não provocado, entretanto o que eu quero ressaltar é que naquela época – no tempo da Lei Mosaica –, não era dado ao feto a mesma importância que se dava à mãe, ao contrário do que hoje pregam os que são radicalmente antiaborto. Se um homem ferisse uma mulher grávida e “Se não houvesse algum outro dano além do aborto, então era imposta uma multa...; porém, se a mulher grávida viesse a perder a vida, nesse caso era aplicada a lei do homicídio... Vida por vida, olho por olho... (O novo comentário da Bíblia, vol. I, pág. 139). Isto é, as penas pelas mortes do feto e da mulher não eram as mesmas.

Muitos estudiosos da Bíblia, para fazer a exegese de determinados trechos, valem-se de diversas versões da Bíblia. Tal procedimento, entretanto, há muito me incomoda, pois, sendo a Bíblia a Palavra de Deus, ela deveria ser clara e objetiva sem necessidade desse recurso. Para mim há um forte indício do porquê isso acontece, entretanto me reservo o direito de não tratar desse assunto agora, haja vista que é apenas um indício e também porque não é esse o escopo deste comentário. Quem sabe um dia eu volte ao assunto?

Eu não sou teólogo nem exegeta. Fiz referência à questão da exegese somente para dizer que vou citar uma tradução da Bíblia que por si só esclarece o que afirmei anteriormente. Não há necessidade, pois, de nenhum trabalho de interpretação. Trata-se de uma Edição Ecumênica da Bíblia Sagrada, tradução de Antônio Pereira de Figueiredo. Eis o texto de Ex. 21:22-25, reproduzido literalmente: 
“Se dois homens brigarem um com outro, e um deles ferir uma mulher pejada, que veio a parir a sua criança morta, ficando ela viva; será condenado a pagar quanto o marido da mulher quiser, e quanto ordenarem os árbitros. Mas se a mãe morreu da ferida, dará vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, nódoa negra por nódoa negra.”
Julgo que o texto é muito claro e não há necessidade de interpretação. Faz-se necessário apenas uma ressalva: como a palavra “pejada” não é muito usual, esclareço apenas que quer dizer “grávida”.   

Saulo Alves de Oliveira

Aborto, religião e estado - Parte 2

Eu sou contra o aborto por princípios morais e éticos, ressalvados alguns casos específicos, talvez os que citei no segundo parágrafo da primeira parte deste comentário. Julgo o aborto uma agressão à “vida humana”. Faço questão de dar ênfase às palavras “vida humana” porque muitos dos que combatem o aborto alegam que defendem a vida, mas não a vida no seu sentido mais amplo, como direito também de todos os outros seres vivos que dividem conosco o planeta. Centenas de milhares de animais – talvez milhões – são assassinados todos os dias pelos mais diversos motivos, inclusive para alimentação do ser humano, e poucos de nós estamos preocupados com tal situação. E eu, lamentavelmente, contribuo com isso, pois também como carne, apesar de considerar uma barbárie contra os animais. Mas essa polêmica fica para outra oportunidade.  

Não acho que o fato da mulher ter o direito de fazer o que bem entender do seu corpo, outorga-lhe o direito de praticar o aborto a seu bel-prazer. Sexo só deve ser feito com responsabilidade, pois poderá ter implicações na vida de um terceiro ser, o qual, em quaisquer situações consideradas, é o único inocente e nada tem a ver com as atitudes de dois corpos humanos prontos para a procriação.

Entendo que o tema deva ser debatido por todos os segmentos da sociedade, incluindo aí o estado, as igrejas e a ciência, para se chegar a uma lei racionalmente justa, dentro de princípios científicos e morais. Julgo, porém, que o estado por ser laico – e defendo esse princípio – não deve discutir temas importantes tomando como base quaisquer religiões, suas doutrinas específicas e seus livros sagrados, porquanto isso é muito perigoso. Relembremos os absurdos cometidos pelo cristianismo no passado por confundir o estado com a religião. E em pleno século XXI absurdos ainda acontecem quando se misturam os ensinamentos do islamismo com o estado.

O estado tem o dever de governar não apenas para uma parcela da população e sim para todos os seus cidadãos: católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, budistas, espíritas, ateus e tantos outros. É sua obrigação atender os interesses de cada grupo social, visando, no entanto, e sobretudo, o bem comum. E o grande estadista governa com o uso da razão.

Cada cidadão tem o direito de professar uma religião ou mesmo não ter religião – ou ainda nem sequer acreditar em Deus –, e não pode ser molestado por isso, mas o estado deve ser laico. O estado não pode ter religião e o homem público, seja qual for sua fé, não pode confundir seu trabalho com sua religião. Não entender tal aspecto é muito perigoso, pois pode transformar o crente em um impositor de sua fé, como acontece em alguns países muçulmanos e já aconteceu na Europa na idade das trevas.  

De forma irresponsável, a questão do aborto foi lançada na última campanha eleitoral pelo grupo que apoiava o Sr. Serra. Inclusive alguns pastores e padres, indignos desses títulos na acepção comum das palavras, participaram daquele teatro, pois o fizeram não apenas por altruísmo, mas sim com o intuito de prejudicar a candidatura da Sra. Dilma Rousseff.

Acusar a então candidata Dilma de ser a favor do aborto, quando a própria mulher o praticou! Talvez premida por uma situação adversa, é compreensível, não se pode julgá-la. Entretanto o  inexcusável – e de um cinismo e hipocrisia sem tamanho – foi deixar a mulher afirmar que “ela (Dilma) é a favor de matar criancinhas”, numa total distorção e descontextualização do tema. Foi uma atitude não só deplorável, mas acima de tudo irresponsável.

Felizmente as críticas arrefeceram logo após a divulgação da notícia de que a Sra. Mônica Serra fizera um aborto em um período difícil da sua vida.

Agora chegou o momento de debater o tema. Com a palavra todos os intervenientes sociais.

Saulo Alves de Oliveira