sábado, 21 de julho de 2012

Dois pesos, duas medidas

Do teu irmão não exigirás juros; nem de dinheiro, nem de comida, nem de qualquer outra coisa que se empresta a juros.

Do estrangeiro poderás exigir juros; porém do teu irmão não os exigirás, para que o Senhor teu Deus te abençoe em tudo a que puseres a mão, na terra à qual vais para a possuíres. 
Dt 23.19,20

Às vezes eu tenho a impressão de que certas pessoas – sendo mais explícito, alguns pregadores ou defensores da fé cristã –, pensam que todos os seus ouvintes são tolos (para não usar uma palavra mais forte). Eu já tive essa sensação diversas vezes: sentado no banco de uma igreja, vendo TV ou escutando rádio.

Uma observação importante: eu não me julgo mais inteligente do que qualquer um dos meus semelhantes, talvez nem sequer atinja a média dos demais mortais; só um pouquinho acima da mediocridade. E isto já basta.

Na manhã de 29 de junho passado eu vinha do Recife dirigindo meu carro na BR 101. Estávamos, eu e a Sulanira, entre Recife e Goiana. O rádio do carro estava ligado. De repente, uma emissora da região entrou em sintonia. Parece-me que era a Rede Brasil. Era um programa evangélico. O apresentador do programa estava anunciando naquele exato momento que um certo pastor iria continuar uma série de palestras que ele vinha fazendo nas sextas-feiras em defesa da Bíblia.

Bom, o que eu entendi: alguém tinha publicado em um jornal um comentário criticando um texto bíblico, exatamente o citado acima; o jornalista havia afirmado que o texto em destaque estabelecera “leis” diferentes para situações semelhantes, isto é, o israelita não poderia cobrar juros de outro israelita, entretanto poderia fazê-lo no caso de um estrangeiro; o que caracterizava, portanto, o que hoje comumente denominamos “dois pesos, duas medidas”.

Naquele momento, portanto, o pastor iria fazer uma réplica “porque as pessoas leem a Bíblia e não sabem interpretá-la”. A propósito, eu acho que a Bíblia não deveria precisar de interpretação, de hermenêutica ou outros conhecimentos para o seu entendimento, ela deveria ser tão clara e objetiva de modo tal que qualquer pessoa lendo-a, em qualquer lugar do mundo, tivesse uma só compreensão. Eu espero que quem estiver lendo este comentário, faça a hermenêutica correta da minha afirmação.

Muitas pessoas defendem a inerrância da Bíblia, ou seja, o entendimento de que a Bíblia não contém erros ou contradições. Até aí, tudo bem. O problema é quando alguém, numa linguagem bem popular, “força a barra” para tentar esclarecer ou justificar uma suposta contradição. Obviamente, o argumento apresentado pelo pastor não tinha exatamente o objetivo de esclarecer uma contradição, mas não deixava de ser uma evasiva para explicar, digamos, uma dificuldade bíblica.

Vamos ao argumento.

No tocante ao versículo 19, não há nenhuma dificuldade para entendê-lo, pois este é claro: os israelitas não deveriam cobrar juros nos empréstimos concedidos aos seus irmãos, isto é, seus compatriotas. Em outra versão está escrito “A teu irmão não emprestarás à usura...”. O único adendo que o pastor fez foi citar que se tratava de empréstimos a israelitas pobres, fazendo certamente uma interpolação com os textos de Êx 22.25 e Lv 25.35-37. Entretanto, como o Deuteronômio foi ambientado nos momentos finais da jornada dos israelitas após 40 anos no deserto, parece que as palavras finais de Moisés deram uma nova dimensão ao preceito, estendendo-o a todos os israelitas, e não apenas aos pobres. Porém, quanto a isso, não vamos polemizar. O problema está na explicação do versículo 20.

Para demonstrar a não existência de “dois pesos, duas medidas”, o pastor quis justificar o preceito dizendo que ele se referia a “estrangeiros comerciantes”, pois estes, como tais, tinham o objetivo de ganhar “dinheiro”, ou obter lucros com seus negócios, portanto era justo que, por ocasião de empréstimos concedidos pelos israelitas, fossem-lhes cobrados juros. É exatamente este argumento que eu reputo como um enorme contorcionismo ou, como eu disse anteriormente, “um forçar a barra” para justificar o injustificável. Está claro que na Lei Mosaica estavam previstos tratamentos diferentes para tomadores de empréstimos: se se tratasse de um filho de Israel – um compatriota, portanto –, era proibida a cobrança de juros; no caso de um estrangeiro, a cobrança de juros era permitida.

Vamos, pois, dar a César, o que é de César; a Deus, o que é de Deus. Não vamos torcer as palavras para, como eu já disse, justificar o injustificável. 

Há razões para tergiversação? Por que não admiti-lo sem evasivas? Isso estava errado? Isso estava correto? Responda a você mesmo. Não é o propósito deste comentário fazer qualquer julgamento desse tópico da Lei Mosaica, apenas constatá-lo.

Contudo, se o leitor tem conhecimento de um versículo bíblico que evidencie que o “estrangeiro” de Dt 23.20 se referia apenas a “estrangeiros comerciantes”, eu estou pronto a voltar atrás na minha crítica.

Saulo Alves de Oliveira