terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O erro foi de Acã, não de suas filhas e filhos e animais

Por Saulo Alves de Oliveira

Após caminhar 40 anos no deserto sob o comando de Moisés, finalmente o povo de Israel chegou à terra prometida. Todavia a terra não estava desabitada e disponível para os israelitas. Foi preciso muito derramamento de sangue para conquistá-la. Apesar de todo esforço e sacrifício pessoal, Moisés não entrou na terra e a conquista de Canaã foi comandada pelo sanguinário Josué.

Durante as matanças e genocídios cometidos por Israel nas guerras pela tomada de Canaã sob o comando de Josué, ocorreu um episódio que desperta interesse e leva pessoas mais sensíveis a reflexões perturbadoras.

Depois de conquistar a importante e fortificada Jericó, Josué resolveu tomar uma pequena cidade chamada Ai. Para conquistar Ai, que tinha apenas 12 mil moradores, Josué mandou um pequeno contingente do seu exército, cerca de 3 mil homens.

No entanto a empreitada foi um desastre e os poucos homens de Ai conseguiram rechaçar o ataque de Israel, cujos soldados fugiram diante dos homens de Ai. Apenas cerca de 36 israelitas foram mortos pelos guerreiros de Ai ao repelirem a agressão externa, na defesa da sua terra e do seu povo.

E por que os homens de Israel foram derrotados no primeiro confronto com o povo de Ai? Castigo de Deus. Por quê?

Deus havia ordenado que ao invadir Jericó todas as pessoas e toda a cidade e seus bens fossem considerados “anátema”, exceto a prostituta Raabe e sua família e toda a prata e o ouro e os vasos de bronze e de ferro.

Parece que a palavra anátema tem mais de um significado na Bíblia. No Velho Testamento, ser “anátema” significa pessoa ou objeto destinados à destruição, portanto não podiam ser tomados pelo povo de Israel e nem ao menos tocados. Por que Deus, o Ser muito acima do sublime e do transcendental, estabeleceu um critério tão terrível e próprio de seres humanos para condenar pessoas, animais e coisas? Sinceramente, não sei.

A cidade de Ai, por conseguinte, conforme Josué 7:11, também estava sob a condenação do anátema.

No entanto, por ocasião da investida contra Ai, um dos soldados de Israel, chamado Acã, cobiçou e resolveu tomar para si algo dos bens do povo atacado, isto é, do anátema, além de ter roubado e mentido, como ele próprio confessou:

“Verdadeiramente pequei contra o Senhor Deus de Israel, e fiz assim e assim. Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma cunha de ouro, do peso de cinquenta siclos, cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da minha tenda, e a prata por baixo dela.” Josué 7:20, 21

Parece que dessa vez Provérbios 28:13 não se cumpriu:

“O que encobre as suas transgressões nunca prosperará, mas o que as confessa e deixa, alcançará misericórdia.”

Vê-se, pois, que Acã não alcançou misericórdia.

Confessado o crime, qual foi a punição? Pena de morte, por apedrejamento e fogo, sem misericórdia e sem direito a apelação. Aqui chegamos, conforme pretensão inicial, ao “x” da questão deste pequeno comentário. Não foi apenas Acã que pagou pelo seu pecado “pessoal”.

"Então Josué, e todo o Israel com ele, tomaram a Acã, filho de Zerá, e a prata, e a capa, e a cunha de ouro, e seus filhos, e suas filhas, e seus bois, e seus jumentos, e suas ovelhas, e sua tenda, e tudo quanto ele tinha; e levaram-nos ao vale de Acor. E disse Josué: Por que nos perturbaste? O Senhor te perturbará neste dia. E todo o Israel o apedrejou; e os queimaram a fogo depois de apedrejá-los. E levantaram sobre ele um grande montão de pedras, até o dia de hoje; assim o Senhor se apartou do ardor da sua ira; pelo que aquele lugar se chama o vale de Acor, até ao dia de hoje." Josué 7:24-26

Sempre me perguntei: se o erro foi cometido só por Acã, por que seus filhos e suas filhas e todos os seus animais foram apedrejados e queimados juntamente com ele? Apedrejar e queimar um só homem já é um espetáculo bárbaro e profundamente chocante. O que dizer então de toda sua família e seus animais, que não tinham absolutamente nada a ver com seu erro?

Há uma interpretação que diz que a narrativa da história deixa claro que os familiares de Acã sabiam do seu pecado e, sem dúvida, concordaram. Nada mais equivocado. Não é possível afirmar que não sabiam ou que não compactuaram com o erro, porém não há nenhuma evidência em sentido contrário.

E tem uma evidência que é fortemente contrária a essa interpretação: por que todos os animais de Acã também foram mortos? Também sabiam e concordaram com o seu pecado?

Mas a história de Ai não se encerra aí. Corrigido e punido o erro, com a destruição literal de Acã e toda a sua casa e seus bens, Israel voltou a atacar Ai, dessa vez com 30 mil soldados, e a destrói por completo. Mata todos os seus 12 mil moradores, toma para si o gado e os despojos da cidade e a queima totalmente, deixando apenas um montão de ruínas.

Há histórias no Velho Testamento que, confesso-lhes, nunca entendi sua razão e sentido e que me chocam, visto que algumas características de Deus conforme registradas no VT me parecem não compatíveis com o Deus grandioso, criador de tudo que existe e daquilo que ainda não sabemos se ou que existe, onipotente, misericordioso e, sobretudo, “...porque ele é bom; porque a sua benignidade dura para sempre”.

O interessante é que alguns evangélicos se chocam quando ouvem falar ou veem imagens de apedrejamentos perpetrados por muçulmanos radicais fundamentalistas e não se chocam com esse ou outros relatos bíblicos similares!

Há aqueles que usam algumas histórias bíblicas em seus sermões, sem importar toda a crueldade nelas contida, como exemplos para as vidas das suas ovelhas e demais ouvintes. Parece que seus olhos espirituais – ou seriam os olhos da razão? – se fecham convenientemente – por medo? –, talvez para não enxergarem verdades duras e inconvenientes (!?). E tiram dessas tragédias de violência e crueldade “lições importantíssimas”.

Alguns vibram de alegria com tais tragédias. Por exemplo: não satisfeito em derrotar o “gigante” Golias, Davi decepou-lhe a cabeça, e a explosão de glórias e aleluias invade o local. “O Senhor é varão de guerra e poderoso nas batalhas!”, vangloriam-se e exclamam em êxtase diante do filisteu, cabeça nas mãos de Davi, e corpo inerte numa poça de sangue. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

"Se existe um Deus, ele terá que implorar pelo meu perdão."

Por Saulo Alves de Oliveira

“Não veio sobre vós tentação, senão humana; mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar.” 1 Coríntios 10: 13

Por mais que os anos se passem e por maior que seja a quantidade de informações que absorvemos sempre nos surpreendemos com coisas novas. Eu nunca tinha ouvido ou lido a frase que dá título a este comentário. Tomei conhecimento há poucos dias. Como é do meu interesse tudo que diz respeito a Deus, inclusive qualquer questionamento acerca de sua existência ou não, a frase chamou minha atenção de forma muito especial.

Ela foi encontrada na parede da cela de um prisioneiro judeu num campo de concentração nazista.

A criatura que fez essa afirmação chocante provavelmente era um judeu, integrante do “povo escolhido”. Esta expressão “povo escolhido” me parece muito controversa, especialmente se vier acompanhada do complemento “por Deus”. Certamente o autor da frase morreu asfixiado com gás, de fome, sede, frio, maus tratos ou, quem sabe, fuzilado. Você já viu as imagens daqueles mortos-vivos, verdadeiros cadáveres ambulantes, pele e osso, nas fotos ou vídeos dos campos de concentração?* Você já viu aquelas imagens de valas repletas de corpos esqueléticos, amontoados uns sobre os outros, dezenas ou centenas? Talvez essa tenha sido a condição que o fez desabafar com uma frase tão chocante.

Fico imaginando quanto sofrimento seu autor passou e presenciou. Eu acho que para chegar a esse nível de lamento, só alguém que foi submetido a um grau de sofrimento muito acima dos limites a que o ser humano é capaz de suportar. É o grito de desespero de uma alma profundamente amargurada por indescritível dor.

Você já visitou um campo de concentração na Alemanha? Eu já. E me senti muito mal. Se você tivesse estado no lugar daquele judeu, e escapado, certamente seus sentimentos de condescendência e boa vontade aflorassem num grau tal que não lhe restaria outra alternativa a não ser sentir-se tomado de profunda compreensão e compaixão pelo autor da frase.

Dentre as várias formas de execução que foram apresentadas pelo guia ao grupo que visitava o local, lembro-me de uma que não era das mais cruéis, visto que não causava tanto sofrimento à vítima, bem como evitava que o executor, eventualmente alguém mais sensível e que matava sua vítima talvez forçado pelas circunstâncias, enfrentasse o terror nos olhos de quem estava prestes a ser executado.

O prisioneiro era levado a uma espécie de ambulatório com a promessa de que iria receber cuidados médicos. Lá ele era instado a despir-se e a entregar qualquer objeto de valor que eventualmente ainda estivesse em seu poder.

Primeira providência dos “cuidados médicos”: pesar o prisioneiro. Este subia em uma balança, de costas para uma parede próxima, logo atrás de si. Do outro lado da parede havia um outro cômodo. Na altura da cabeça do “paciente” tinha uma abertura, uma fresta e do outro lado da parede havia um soldado com um fuzil nas mãos. Quando o “paciente”, tranquilo, estava na balança, o soldado posicionava o fuzil e atirava em sua cabeça ou nuca. O carrasco, ou executor, não via o terror no olhar do desafortunado prisioneiro, como acontecia no caso de um pelotão de fuzilamento, nem o prisioneiro sentia os horrores próprios de quem está prestes a ser executado. Morria feliz por estar recebendo “cuidados médicos”. Talvez essa fosse a execução mais “humana” em um campo de concentração nazista, se é que se pode atribuir esse adjetivo ao assassinato de um ser humano.   

Certamente essa é a frase mais impactante e perturbadora que já li ou ouvi em toda minha vida.

Lamentavelmente, parece que o autor da frase não recebeu o escape e, portanto, não suportou. 

*Eu pensei em colocar uma foto com imagens de pessoas em um campo de concentração, mas desisti. Se alguém tiver interesse é só procurar na internet que facilmente encontrará.