segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Lutar contra a evolução? Talvez, em certa medida, sim.

Por Saulo Alves de Oliveira

Se não houvesse evidências da evolução da vida na Terra e se se tratasse apenas de uma questão de crença, eu preferiria acreditar no evolucionismo em vez de acreditar no criacionismo. É inconcebível, e foge à racionalidade, acreditar que o Deus justo e bom – “...porque a sua benignidade dura para sempre” – criou um mundo tão injusto e mau como o mundo em que vivemos. Se Deus tivesse alguma coisa a ver com o que acontece na Terra, especialmente no que tange à Natureza, ele não seria um ser benigno, antes pelo contrário.

Diante disso, há dois aspectos a considerar.

Conforme a teologia cristã, Deus criou todas as coisas. Deus é onipotente, onipresente e, sobretudo, onisciente, conhece o passado, presente e futuro. Portanto, ele não foi apanhado de surpresa, ele sabia exatamente o que iria acontecer, ou seja, que a criação do ser humano e de toda a vida na Terra não daria certo. Conhecedor de todas as injustiças, males e crueldades, que sobreviriam sobre a humanidade e sobre a Terra e a vida de um modo geral a partir da queda do primeiro casal, mesmo assim ele decidiu criá-las!? E uma das consequências é esta: Deus permite vir ao mundo dois seres que não têm o direito de escolha, sendo um miseravelmente pobre, que sobrevive literalmente de migalhas – quando as encontra –, e um outro terrivelmente rico, que vive literalmente com muito mais do que o necessário para ter uma vida digna. Ele não poderia evitá-lo? O ser humano e a própria Terra são tão pequenos e insignificantes diante da grandeza e onipotência de Deus que, para ser Deus, ele não depende em absolutamente nada das suas existências. E, conhecedor que era de todas as consequências da queda, inclusive de todo o sofrimento e crueldade que se abateriam sobre sua criação, Deus para ser Deus não precisaria ter criado o ser humano e a Terra.

O segundo aspecto a considerar é o seguinte: se toda a criação, incluindo o ser humano, tem uma explicação natural, todas as coisas que acontecem sobre a Terra também têm uma explicação natural. Talvez tudo seja consequência da nossa natureza animal, inclusive a maldade e as injustiças.

Se observarmos a Natureza em seu aspecto mais marcante, a vida dos seres vivos, fruto da evolução, veremos que o mundo dos animais é extremamente cruel, mau e injusto. Por exemplo: um filhote que perde seus pais é, em quase todos os casos, imediatamente eliminado. Em geral os filhotes não sobrevivem à morte das suas mães, pois falta-lhes sua protetora, guia e fonte de alimentação.

Em algumas circunstâncias, os animais matam os da sua própria espécie. Certa vez, eu vi uma cena em que a fêmea de uma ave tinha três ou quatro filhotes no ninho. Por razões que eu não sei explicar, talvez para diminuir o número de bocas a alimentar e assim melhorar as chances de sobrevivência dos outros dois ou três, ela matou um dos filhotes. Não deu para perceber se ele tinha algum defeito físico, porquanto a própria Natureza elimina os fracos, doentes ou defeituosos e preserva os mais saudáveis. E o mais chocante: não foi uma morte rápida e indolor, o ritual de agressões para matá-lo demorou vários minutos, com o filhote “gritando” durante toda a sessão de tortura até sucumbir.

Evidentemente, os animais não têm consciência do mal que infligem aos de outras espécies ou mesmo aos da sua própria espécie. Fazem, para sobreviver, o que a Natureza e os seus instintos mandam, isto é, matam – às vezes com requintes de crueldade – e devoram, ou então serão eliminados pela fome ou por outros predadores. Mesmo um animal adulto e poderoso, como é o caso do leão ou elefante, que, em consequência de uma luta ou acidente, quebre uma perna, basta uma só perna, será, de imediato, eliminado e devorado pelos seus predadores.

Em outra cena que assisti, um búfalo, que em muitos casos enfrenta leões e às vezes os mata, não pôde resistir, com uma perna quebrada, ao ataque de três leões. Em pouco tempo virou alimento para as três feras.

Os velhos são eliminados de forma inexorável. Os fracos ou doentes também são eliminados sem piedade.

Em outra cena, quatro leões atacaram um outro da sua própria espécie, já velho e machucado, até à morte.

Quando um animal mais forte encontra um outro mais fraco alimentando-se de uma presa abatida pelo mais fraco, aquele, sem qualquer vestígio de escrúpulo, se apodera do alimento obtido sem nenhum esforço ou risco.

Alguns predadores, como as hienas e os mabecos (ou cães selvagens africanos), devoram suas presas ainda vivas.

Há algo mais injusto e cruel do que as cenas relatadas acima? Lamento dizer: sim.

Os humanos, como regra, cuidam dos seus idosos, dos doentes ou deficientes, não os deixando morrer à míngua. Isso é lutar contra a evolução. Infelizmente, nem sempre foi assim. Ainda hoje há notícias de que se pratica o infanticídio de crianças com deficiência em algumas tribos indígenas no Brasil. Há relatos de que alguns grupos sociais consideram os idosos frágeis como um fardo e tomam providências para acabar com suas vidas.    

Talvez a maldade e as injustiças entre os seres humanos ainda sejam consequência do tempo em que os nossos ancestrais vagavam pelas florestas africanas, aninhando-se à noite no alto das árvores, ou, milhares de anos depois, em cavernas, lutando pela sobrevivência. Ou matavam ou morriam. Depois, com a evolução humana chegando ao estágio do Homo sapiens, já que muitos de nós adquirimos consciência do sofrimento e da dor, é provável que, ao longo de milhares de anos, e a duras penas, a humanidade percebeu que a dor que “eu” sinto é a mesma dor que o meu semelhante sente, pois quando “eu” machuco ou firo alguém “eu” sei que sentirei a mesma dor se o outro for o meu agressor e fizer o mesmo comigo. Infelizmente, os outros animais ainda não chegaram a esse estágio de civilidade. É provável que ao longo de dezenas de milhares de anos, talvez centenas, nós, humanos, fomos aprendendo e colocando em prática aquilo que Jesus falou há apenas 2 mil anos “Façais aos outros apenas o que quereis que vos façam” ou “Amai-vos uns aos outros”.

É claro que a humanidade ainda tem muito a crescer do ponto de vista moral. Fisicamente, se não tivermos destruído o meio-ambiente que nos proporciona as condições para continuação da vida na Terra, não sei como estaremos daqui a 100 mil anos. Ainda estaremos aqui?

O gato, ao “brincar” com o camundongo, no seu solta e pega ou joga para cima, num verdadeiro ritual de tortura, mata-o de pancadas e de exaustão. E nem sempre é para se alimentar. Por que eu sei disso? Porque eu tenho gatos e observo o seu comportamento. Já livrei diversos pequenos animais das suas garras e dentes, como também já encontrei diversos cadáveres de pequenos camundongos ou pássaros intactos ao redor da minha casa, mortos após uma verdadeira sessão de torturas. Eles o fazem com prazer? Parece que sim. Eles têm consciência do mal que praticam? Até onde sei, não.

Talvez as atitudes dos torturadores e dos assassinos, ainda não atingidos pela civilidade, sejam parcialmente resquícios instintivos ou impulsos da fera que existiu ou, em alguns casos, ainda existe dentro de todos nós. Muitos torturadores e assassinos atacam suas vítimas por prazer, como o fazem os gatos com os pequenos roedores. Todavia, quero acreditar que a civilização conseguiu amoldar a maioria dos seres humanos e adequá-los para o bem, apesar de tantas guerras e mortes e do aumento das armas de destruição e do clima de belicosidade entre humanos ou entre países. Infelizmente, muitos ainda estão como na época das cavernas ou das copas das árvores, quando o que valia mesmo eram a força do braço, as garras e os dentes. Portanto, é indispensável que a civilização os contenha com os recursos da justiça, da segregação social ou prisões ou, tratando-se de líderes de grupos ou países hostis, do poder do convencimento para o bem de todos os seres humanos.

Sendo assim, acreditar que Deus criou o Universo e, de modo particular, a Terra, com toda a sorte de maldade, injustiças e sofrimento que vêm se desenrolando desde o princípio, é praticamente afirmar que Deus é uma entidade malévola, considerando que ele sabia previamente de tudo isso.

Eis, pois, a razão da minha afirmação no início deste pequeno comentário: se não houvesse evidências para a evolução da vida na Terra mesmo assim seria preferível acreditar na evolução e não na criação.

A evolução não tem compromisso com o bem ou mal, com a justiça ou injustiça, com o amor ou ódio, com a bondade ou crueldade. A evolução é indiferente a tudo isso. A evolução é indiferente ao sofrimento. A evolução simplesmente acontece.

Cabe-nos, portanto, com a consciência do mal e do bem que adquirimos ao longo de eras, lutar para, no mínimo, diminuirmos o sofrimento dos nossos semelhantes e as injustiças. Quiçá, um dia, no estágio mais elevado da consciência humana, eliminando-as por completo.

Talvez, em certa medida, cabe-nos lutar contra a evolução.