quinta-feira, 29 de abril de 2021

A criança dormia no chão de terra

Por Saulo Alves de Oliveira

O contexto era a foto de um garoto negro, talvez 3 ou 4 anos, sujo e maltrapilho. Deitado sobre um chão de terra, parecia estar num sono profundo. Não lembro exatamente a legenda, entretanto, com absoluta certeza, o significado da mensagem era este: “Muitos não sabem agradecer por tudo que têm recebido. Deveriam pedir perdão a Deus”.

Minha provocação: E a quem o garoto da foto deve agradecer? Quem vai pedir perdão a ele? Deus?

Leuza, uma amiga, comentou: “Possivelmente o melhor é entender que esse garotinho deva agradecer a Deus pela vida, pelo sono tranquilo e pelo chão onde repousa... Um testemunho para todos aqueles que têm mais do que isso e nem sempre agradecem! ”

Minha réplica: Quem não conhece o melhor contenta-se com o pouco que tem. Ninguém aprecia o que não sabe que existe. Porventura ele teve a oportunidade de deitar-se sobre um colchão macio ou de tomar um agradável banho para ficar limpinho e cheiroso? Provavelmente não. Talvez ele não saiba nem sequer o que é vestir uma roupa nova. Portanto, apesar de imundo e vestindo trapos, ele parece dormir tranquilo sobre o chão de terra. Tal circunstância, porém, não impede que reconheçamos que essa não é a condição de vida que qualquer criança merece ter, especialmente com toda a riqueza e os recursos de bem-estar disponíveis no mundo moderno. Tenho certeza absoluta que qualquer um de nós se sentiria chocado e profundamente angustiado se um de nossos filhos fosse encontrado nessas condições precaríssimas. Quem de nós agradeceria a Deus ao ver seu filho, uma inocente criança, imundo e maltrapilho, dormindo no chão de terra? Você Leuza? Você Lena?

Desculpe, Leuza, é apenas uma opinião, mas eu acho sua afirmação muito simplista. Então o garoto deve agradecer a Deus pelo sono tranquilo e pelo chão duro e sujo onde dorme porque a situação dele poderia ser pior? Essa forma de pensar implica uma regressão terrível de conformismo, isto é, eu devo agradecer a Deus porque sempre haverá alguém em uma situação pior do que a minha. Qual é o limite desse desdobramento? Se eu ganho um bom salário, eu devo agradecer a Deus porque alguém ganha um salário modesto. Se eu ganho um salário modesto, eu devo agradecer a Deus porque alguém vive com um salário mínimo. Se eu ganho um salário mínimo, eu devo agradecer a Deus porque outros sobrevivem da ajuda de parentes. Se eu sobrevivo da ajuda de parentes, eu devo agradecer a Deus porque outros escapam esmolando. Se eu sobrevivo de esmolas, eu devo agradecer a Deus porque outros nem isso podem fazer e morrem de fome. Então, na sequência da regressão, eu devo agradecer a Deus porque estou morrendo de fome? Parece-me que essa é a lógica da sua proposição em relação ao quadro da criança deitada, suja e em trapos, dormindo sobre o chão. Eis a razão do meu questionamento inicial. Esse exemplo da regressão é apenas um dentre muitos outros que poderiam ser oferecidos para apreciação.

Evidentemente, eu posso estar totalmente equivocado, pois não sou o depositário da verdade. Essa réplica é apenas para reflexão daqueles que tiverem a oportunidade de ler esses comentários, visto que só refletindo e questionando nós poderemos chegar a conclusões moralmente razoáveis.      

Então, Lena comentou: “Concordo com você, Leuza, e acrescento: Deus não pede perdão às suas criaturas, sejam elas adultas ou crianças. E o garotinho não tem de pedir perdão a Deus, nem a ninguém, até porque a Bíblia diz que o reino dos céus é dele. Quem deve pedir perdão a Deus são aqueles que receberam dádivas e não são gratos; são os governantes que, tendo em suas mãos a possibilidade e a obrigação de fazer o bem, não o fazem; são os soberbos, os quais acham-se no direito de reclamar de Deus, ou que, de tão orgulhosos, imaginam que podem até mesmo duvidar da Palavra de Deus [tomei essas palavras como uma reprimenda pessoal], a qual pergunta: ‘De que se queixa o homem?’ e ela mesma responde: ‘Queixe-se dos seus próprios pecados’. Ah, sim, o pecado dos homens é a razão primeira desse garotinho estar ao relento.”

Minha réplica: Lena, então uma criança pode se queixar do seu sofrimento, visto que ela não tem pecados! Concorda? Infelizmente, nem isso as crianças fazem, pois, além de não terem consciência do pecado, nem mesmo do seu próprio sofrimento elas têm consciência e nem sequer sabem por que sofrem. “O pecado dos homens é a razão primeira desse garotinho estar ao relento”. Eu sei que do ponto de vista tangível, material, simplesmente humano, essa é uma afirmação verdadeira. E é também uma justificativa que eu escuto desde o princípio da minha racionalidade. Sob a ótica da Terra como um sistema estanque, meramente físico, sem interferências externas, ela me satisfaz. Todavia isso não é tudo. E por uma razão muito importante: de acordo com a teologia cristã a vida sobre a Terra não é apenas um acidente em todo o Cosmos, também não é somente uma coisa terrena e animal, desvinculada do sublime, do transcendental. Há algo superior, transcendental, que é responsável e comanda tudo o que acontece, e interfere na história da humanidade e do Universo. Há um ditado que diz: “não cai uma folha da árvore sem a permissão divina”. Analisando essa simples afirmativa, tendo como pressupostos a onipotência e a onisciência divinas, essa máxima popular – pode-se dizer assim – faz todo o sentido. Portanto, a partir dessa constatação, é forçoso concluir que qualquer sofrimento sobre a Terra tem a permissão – ou seria determinação? – de Deus. Caso contrário, como entender que do alto da sua onisciência, e onipotência, Deus criou um planeta onde toda espécie de injustiças e maldades se estabeleceriam? Ele não foi apanhado de surpresa. Nem poderia! E há um detalhe muito importante em tudo isso: Deus para ser Deus não depende absolutamente em nada da criação do ser humano, nem da Terra ou mesmo do Universo. Dito de outra forma: não precisava tê-los criado. Além disso, uma criança inocente deve pagar ou sofrer pelos pecados de outras pessoas? Ou mesmo em decorrência de eventos que se deram há milhares de anos com os primeiros seres humanos? Isso foge a qualquer critério de justiça humana ou divina. Cada ser deve pagar pelos seus próprios erros ou pecados. Uma criança não tem pecados, portanto não merece sofrer de forma alguma. Aqui ou em qualquer outro lugar do mundo, sejam seus pais cristãos ou não.

Não houve tréplica. 

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