Por Saulo Alves de Oliveira
Agradeço-lhe por sua mensagem e por sua preocupação em
relação a este ser humano comum. Todavia, não tenho nada a dizer sobre suas
observações, exceto quanto ao seu último parágrafo.
Não sofro angústias ou crise existencial. Na realidade, até
sofro, mas nada que não seja comum a qualquer ser humano em sua luta diária
pela sobrevivência. Certamente até você passa por momentos de angústia. Nada
mais natural, não é mesmo?
Talvez eu até viva uma crise existencial, que se prolonga
por, quem sabe, 25 anos. Confesso-lhe que não sei se sairei dela um dia. Mas,
se vivo uma crise existencial, posso afirmar que tal fato me tem feito ver
coisas que antes estavam encobertas pela névoa de uma fé radical e, de certo
modo, fundamentalista.
Quanto a frustrações e decepções, concordo com você, porém
sob outros aspectos.
Já me decepcionei com Deus sim, frustrei-me com a Bíblia e
com a fé. Senti-me desamparado por Ele diversas vezes.
Muitas coisas aconteceram na minha vida, que mudaram a minha
forma de me relacionar com Deus, minha visão da Bíblia e da fé, a tal ponto que
hoje não tenho receio de declarar, como o faço agora. Na realidade, hoje não
sou a mesma pessoa de há 25 anos. Não estou apenas mais velho. Realmente, não
sou o mesmo.
Sempre ouço pessoas dizerem que Jesus nunca as decepcionou.
Não sei o que é que poderia acontecer na vida de alguém para se dizer
decepcionado com Jesus. Há pessoas que passam 10, 20, 30 anos ou mais orando
por alguma coisa muito especial para si e nada acontece. Depois, morrem sem ver
o seu sonho realizado. A desculpa e o autoconsolo é que “certamente não era a
vontade Deus”. Realmente, assim, por mais que alguém sofra, Jesus nunca
decepciona ninguém.
Felizmente – ou infelizmente, não sei ao certo –, comigo as
coisas não são assim. Eu não dispenso evidências convincentes.
Jamais entendi e sempre questionei, pelo menos na minha
mente, certas coisas, no entanto para o meu “bem” deixava pra lá. É como dizia minha
querida mãe: “Meu filho, quando se come peixe, a gente deixa as espinhas de
lado”. E quantas espinhas eu deixei de engolir!
Porém as coisas se complicaram muito com a morte da minha
sogra aos 51 anos de idade em 1989.
Talvez mais do que seus filhos, eu não acreditava que ela
morreria daquela doença. Por quê, se todas as pessoas morrem?, você pode
perguntar. Porque eu tinha fé e a Bíblia diz “...pois em verdade vos digo que,
se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para
acolá, e ele há de passar; e nada vos será impossível.” Portanto, enquanto
havia vida, eu acreditava que ela seria curada. E eu orei muito por isso.
Na verdade, eu fui reprovado no primeiro grande teste da
minha vida. E isso teve uma repercussão extremamente importante ao longo dos
anos seguintes.
Eu pedi, pedi, e obtive o silêncio como resposta. E essa
história de dizer que o silêncio de Deus também é resposta não me convence.
(Minha sogra morreu de câncer; meu sogro morreu de câncer;
minha mãe morreu de câncer; meu pai morreu de câncer; quatro referenciais na
minha vida, todos crentes, sinceros, honestos e de vida “santa”. Tais fatos, na
minha ótica, são sintomas de algo que as pessoas não querem ver porque para
elas é reconfortante não ver.)
E essa não foi a única vez. Depois vieram outras
experiências. Posso relatar mais uma. Eu passei por momentos muito difíceis
depois que fui trabalhar em
Recife. Não sei se você sabe, mas passei onze anos
trabalhando no BB em Recife a partir de 1996. E nos primeiros dois anos vivi
uma experiência emocional muito desagradável, ou seja, uma quase depressão, e
me vi absolutamente só.
Pedi tanto a Deus que me ajudasse a atravessar aquela etapa
tão difícil, e nada de ajuda. Não precisava eliminar o meu sofrimento, pois o
sofrimento é inerente à vida humana. Bastaria que me dissesse: “Eu estou ao teu
lado e te ajudo na caminhada”. No momento em que mais precisei, Ele me
abandonou. Silêncio total. A decepção foi literal.
Então, não tinha outra saída, pois já haviam transcorrido
vários meses e, para superar a minha quase depressão, eu tive de recorrer a
alguns profissionais que me ajudaram realmente a sair daquela situação.
A partir daí passei a questionar ainda mais muitas coisas
referentes à vida, à fé, a Deus e à Bíblia. E não encontrei respostas; e quando
as encontrei não me satisfizeram; e quando me satisfizeram tinham outra
dimensão.
Eu digo sempre que, para algumas perguntas, já encontrei
respostas; outras, ainda estão se processando na minha mente; e há aquelas para
as quais, provavelmente, eu jamais encontre respostas. Mas, no estágio da vida em
que estou, jamais desistirei de procurar respostas. E isso tem sido de um valor
extraordinário para o meu desenvolvimento intelectual, moral e espiritual.
Não pense que eu tenho raiva de Deus por tudo isso. Eu
apenas passei a vê-lo de uma maneira totalmente diferente.
Depois, vieram outras descobertas, outros conhecimentos que
me deram uma nova visão da vida e do ser humano. Eu posso lhe dizer que é uma
visão espetacular desse pequeníssimo planeta chamado Terra, onde toda a vida
que conhecemos habita, na vastidão deste imenso e deslumbrante Universo.
Só lamento que, talvez por deficiência intelectual inerente
a este beócio ser humano, essa nova visão tenha vindo com tanto atraso.
Na realidade, sou apenas alguém envolto em pensamentos e
reflexões acerca da vida.
Tenho consciência de que estou só um pouquinho acima da
mediocridade, porém, no máximo, no máximo mesmo, talvez só alcance a média da
inteligência das pessoas comuns.
É provável que, se tenho alguma vantagem em relação à
mediocridade (?), se deva tão somente a minha necessidade de saber a verdade e
não simplesmente acreditar, de não ter receio de perguntar, questionar, ainda
que o Criador, e não me conformar com certas respostas, apesar de não ter ou
não saber a resposta correta ou definitiva para muitas questões.
Ah, meu caro Pastor, a Bíblia tem histórias inaceitáveis do
ponto de vista de um Deus onipotente, onisciente e cuja benignidade dura para
sempre. E as pessoas têm medo de questionar. Por quê? Por medo de Deus?
Apenas um exemplo, dentre muitos que poderiam ser citados:
nunca me conformei com as respostas para as matanças de animais no VT. Na
consagração do templo, Salomão sacrificou, em apenas sete dias, 22.000 bois e
120.000 ovelhas. Mesmo que tenham sido quatorze dias, “...pois haviam celebrado
por sete dias a dedicação do altar, e por sete dias a festa”, ainda assim
atingiram a terrível marca de mais de dez mil animais por dia ou sete animais
mortos a cada minuto! Antes eu lia tal passagem e não tinha dificuldade em digeri-la. Hoje ,
não. Não vejo justificativa alguma razoável para isso. Não vejo justificativa
alguma para essa sede insaciável de sangue. Ao se considerar o Ser transcendental
que é Deus, não vejo sentido algum em sua satisfação com o “cheiro suave” de
animais queimados.
Sob o ponto de vista do Deus onipotente, há algo mais grave
ainda e de justificativas que nada justificam: a matança ou extermínio de seres
humanos – homens, mulheres, velhos, crianças inocentes – e animais, também
inocentes, ordenadas por Jeová através de ou executadas por homens como Moisés
– o manso – e outros. Ele, o Senhor, poderia ter sido seletivo com os maus.
São moralmente inaceitáveis os crimes e assassinatos
cometidos por Israel sob as ordens de homens como o já citado Moisés, a mandado
do próprio Deus (sic). São muitos os exemplos, mas cito apenas um (você conhece
a Bíblia muito melhor do que eu, você foi meu professor): o massacre dos
midianitas – Nm. 31.1-24.
Tais histórias me afligem e me são profundamente desconfortáveis.
A você, não?
Além disso, acredito que jamais entenderei o porquê de
tantas divergências de interpretação da Bíblia, A Palavra de Deus, o Manual de
Deus para a humanidade. Só para citar um único exemplo: doutrina da
predestinação versus livre arbítrio. Na realidade, para mim isso é um forte indício
de algo muito maior e muito perturbador, mais do que a simples contradição
entre as duas doutrinas. Porém acho que sobre isso devo ficar por aqui
mesmo.
Conheço muito bem, e de longas datas, sua capacidade
intelectual, seu profundo conhecimento teológico e das ciências e sua
perspicácia argumentativa. O que deve ter-se aprimorado ainda mais com o passar
dos anos.
Apesar de nunca ter privado da sua amizade, sempre o
respeitei e o admirei pela sua sinceridade, caráter, honestidade e ética. Hoje,
ainda o respeito.
Quanto a suas posições políticas, conhecidas mais claramente
agora, lamentavelmente não posso dizer a mesma coisa. Mas, felizmente vivemos
em uma democracia e somos livres para pensar e decidir de que lado devemos
estar. É um direito seu e que jamais pode lhe ser negado. Afinal, temos o livre
arbítrio, não é mesmo?
Quanto a mim, procuro viver a vida sabendo que estar vivo e
ter a consciência do ser é a coisa mais espetacular que poderia me acontecer,
pois sou fruto de uma grande corrida que se travou há quase sessenta anos no
interior de Maria Carlos e, dentre centenas de milhões de potenciais seres
humanos, literalmente eu fui o vencedor. Todos os demais foram simplesmente
eliminados. Portanto, eu poderia não estar aqui, e jamais tomar conhecimento
das belezas e feiuras da Natureza. Bastaria apenas que outro espermatozoide
tivesse sido mais rápido do que este “atrevido”.
Não pense que, por tudo que falei, hoje sou uma pessoa
amarga e revoltada. Ao contrário, sou muito feliz porque hoje tenho uma
consciência muito maior da finitude da vida e da sua beleza e do que significa
estar vivo.
Para concluir, devo dizer que não sei exatamente como
enfrentarei aqueles momentos cruciais no limite da vida para a eternidade.
Espero ter a mesma tranquilidade e resignação do meu velho e querido Pai que,
se não demonstrou alegria porque ia encontrar-se com o Eterno, manteve, até o
fim, a serenidade e firmeza de quem sabe para onde vai.
Desejo tão somente que você, sua família e sua querida esposa
– que, segundo notícias que ouvi, passa por problemas de saúde não tão simples
– estejam em Paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário