quinta-feira, 21 de julho de 2022

Experiência pessoal: maior prova da existência de Deus?!

Por Saulo Alves de Oliveira

Experiências pessoais podem ser importantes na formação espiritual, e até moral, do ser humano, para o bem ou para o mal. Daí a afirmar que podem provar a existência de Deus vai uma grande distância.

Há algum tempo eu ouvi um pregador afirmar que a sua experiência pessoal era a maior prova da existência de Deus. Ao ouvi-lo, eu fiquei pensando: experiência pessoal, a maior prova da existência de Deus?! Isso faz algum sentido? E se um ateu afirmar: a minha experiência pessoal é a maior prova da inexistência de Deus? A existência ou não de Deus depende da experiência pessoal de cada um? Deus é ou não um ser absoluto e de certa forma “tangível”?

Bom, as minhas experiências pessoais são conflitantes. Sendo assim, eu posso usá-las para dizer que Deus existe ou não existe? Acho uma temeridade.

Então, ao ouvir o pregador, eu me perguntei:

- E se um católico dissesse assim "A minha experiência pessoal é a maior prova de que Maria, mãe de Deus (sic), e os santos atendem as minhas orações”?

- E se um muçulmano dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que só Alá é Deus e Maomé o seu profeta”?

- E se um espírita dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que os mortos fazem contato com os vivos”?

- E se um hindu dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que oferecer um mantra a Shiva traz cura integral para corpo e mente”?

- E se um índio dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que Tupã ou os espíritos ancestrais fazem chover”?

- E se um budista dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que Buda é o iluminado que trouxe a verdade à humanidade”?

- E se um judeu dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que Jesus não é Deus”?

- E se um umbandista dissesse assim “A minha experiência pessoal é a maior prova de que uma ‘entrega’ ou ‘oferenda’ me faz entrar em contato com os orixás ou com meus guias espirituais”?

(...)

Observem, se experiência pessoal tem algum valor é apenas para a pessoa que a tem, no entanto para terceiros é indispensável a possibilidade de uma análise com independência e completa ausência de envolvimento pessoal com o fenômeno e com o protagonista do evento. Em determinados momentos, experiências pessoais podem abrandar temores e acalmar o espírito, portanto têm algum valor relativo. Como a própria expressão diz: é uma experiência pessoal. E pode funcionar como um placebo. Um placebo pode até curar a alma e o corpo.

Se eu conduzisse a minha vida baseado em experiências pessoais, talvez hoje eu fosse um cético ou quem sabe um místico.

Quando meu filho mais novo tinha 5 ou 6 anos, portanto há muitos anos, eu passei por uma experiência pessoal que poderia ter sido a causa de consequências dramáticas em nossas vidas. De certa forma, poderia ter mudado o nosso futuro no que tange à percepção da realidade e de nossas convicções espirituais. Certa noite, ele entrou desesperado no meu quarto dizendo que acabara de ver uma “coisa” estranha. “Papai um bicho no meu quarto e quando eu olho ele se movimenta”. A criança estava literalmente em pânico. A história poderia ter dois caminhos: 1) encará-la como algo sobrenatural ou espiritual ou 2) tentar encontrar explicações racionais para a “coisa” estranha. Se o primeiro caminho tivesse sido trilhado, o desfecho poderia ter sido trágico. Hoje meu filho poderia ter sérios problemas psicológicos e emocionais e, quem sabe!, ser uma pessoa perturbada por visões irreais que - fruto de uma mente confusa - só existiriam em sua cabeça. Felizmente, venceu a razão e não o misticismo ou crendice. Tivemos a sensatez de analisar a situação e procurar explicações racionais. E a encontramos. Hoje, já com 37 anos, meu filho nem sequer se lembra do episódio. Convém lembrar que, ao relatar o fato no trabalho, minha esposa ouviu sugestões de que talvez a criança fosse um médium e que deveria ser levada a um centro espírita para desenvolver sua mediunidade. É importante registrar que essa sugestão foi totalmente descartada.

Em um comentário anterior neste blog eu relatei o episódio. Se alguém quiser lê-lo e tomar conhecimento do que aconteceu, basta clicar aqui.

Eu acredito que muitas pessoas sofrem hoje, como adultas, e de forma irremediável, as consequências de situações vividas na infância ou adolescência que foram tratadas como sobrenaturais ou espirituais e que não passavam de equívocos ou que tinham uma explicação racional. 

Dentre os vários fenômenos mentais que interferem nas nossas vidas e afetam as decisões que tomamos há um denominado “viés de confirmação”.

Eu não sou especialista nesse tema, portanto não vou me estender em considerações, certamente o assunto é bem mais profundo. Todavia, “viés de confirmação” é a tendência de só aceitarmos ou só levarmos em consideração aquilo que confirma as nossas crenças ou as nossas hipóteses iniciais.

Aquilo que confirma nossas crenças ou as ideias que temos sobre determinado assunto é abraçado instantaneamente, e sem maiores considerações, como verdade absoluta. Por sua vez, aquilo que é contrário às nossas crenças e ideias é desconsiderado sem a menor análise, ainda que esta seja a situação recorrente.

Há vários exemplos que podem ser citados. Vamos a apenas um. Dança da chuva.

Havia um ritual entre os povos antigos conhecido como “dança da chuva”. Ainda hoje é praticado por índios. O objetivo é alcançar a benevolência dos espíritos para que estes mandem chuva. O índio faz o ritual da “dança da chuva”, que é uma espécie de dança mesmo, e, algum tempo depois, começa a chover. Conclusão: seus deuses ou os espíritos ouviram e atenderam suas preces. Acontece que provavelmente foram dias, semanas ou meses de ritual e nada de chuva. Todo esse período não foi considerado, mas apenas aquela chuva que, invocada durante tanto tempo, confirmou a crença de que os espíritos de seus ancestrais fazem chover. E nos anos em que não choveu, apesar de todos os rituais de invocação?

Algo semelhante acontece com homens e mulheres do sertão que, apesar de anos de seca, acreditam que suas orações ou rezas são a causa de um bom inverno em determinado ano. Na realidade, Deus ou qualquer espírito não têm absolutamente nada a ver com a chuva. Seca ou chuva são apenas fenômenos naturais que vêm ocorrendo ao longo dos milhões de anos de história da Terra.

Portanto, experiências pessoais não são provas definitivas de absolutamente nada, apenas nos faz pensar que as nossas crenças estão certas, pois confirmam aquilo que previamente já acreditamos, seja a existência ou não de Deus ou de qualquer outro aspecto relacionado à religião. E qualquer experiência que contraria as crenças ou as expectativas, não importa o número de casos, é sempre desconsiderada.