sábado, 31 de dezembro de 2011

Ciência e esoterismo

Algumas pessoas criticam a ciência porque esta não tem compromissos com suas crenças e com sua fé, e por isso muitos até a satanizam. A ciência, entretanto, não tem nada a ver com o Diabo, porquanto uma grande parcela dos cientistas, talvez a maioria, não acredita na existência de Deus como também não acredita sequer na existência de Lúcifer.

A ciência trabalha para descobrir a verdade acerca das leis que regem o nosso Universo, independentemente dessas leis confirmarem ou não os dogmas de quaisquer religiões. Exemplo: a ciência não visa confirmar a história de Adão e Eva do Gênesis, porém seu  objetivo é descobrir a origem da vida em nosso planeta e como surgiram todos os seres vivos, inclusive o ser humano.

Para dar uma pequena ideia de como trabalha o cientista, reproduzo a seguir um pequeno texto extraído do livro “Retalhos cósmicos”, de Marcelo Gleiser, físico e astrônomo brasileiro. Chamo a atenção para os trechos sublinhados. O texto tem o título “Ciência e esoterismo”:
"A astrologia é muito mais popular do que a astronomia. Sem dúvida, um número muito maior de pessoas abre o jornal ou uma revista para consultar uma coluna astrológica do que para ler uma coluna sobre astronomia. E a astrologia não está sozinha; numerologia, quiromancia, cartas de tarô, búzios etc. [e algumas estripulias religiosas, inclusive de alguns charlatães evangélicos (esse acréscimo é meu)] também são extremamente populares.

Como físico, não cabe a mim tentar explicar o porquê dessa irresistível atração pelo que obviamente está além do que chamamos de fenômenos naturais. Mas posso ao menos oferecer uma conjectura. O fascínio pelo esotérico vem justamente de seu aspecto pessoal, privado; você paga a um profissional com conhecimento ou “poderes” esotéricos para que ele fale sobre você, sua vida, seus problemas, seu futuro...

Por trás desse fascínio pelo “saber” esotérico encontramos nosso próprio desejo de nos situarmos melhor emocional ou profissionalmente em nossas vidas. Nesse sentido, a atração pelo esoterismo força as pessoas a uma autoreflexão que pode até ser muito importante como veículo de autoconhecimento. Segundo esse ponto de vista, é nossa própria psique, talvez catalisada mas não controlada por poderes ocultos ou sobrenaturais, que nos ajuda a melhorar nossa existência.

Mas como físico cabe a mim fazer o  papel do chato e argumentar contra a crença na existência desses fenômenos no mundo natural. E isso não é porque sou “bitolado” ou “inflexível”. Muito pelo contrário, qualquer cientista ficaria imediatamente fascinado pela descoberta de um fenômeno novo, por mais estranho que ele seja. Faz parte de nossa profissão justamente manter a cabeça aberta para o inesperado.

O problema com o esoterismo é que não temos nenhuma prova concreta, científica, de que esses fenômenos realmente ocorrem. As “provas” que foram oferecidas até o momento – fotos, depoimentos pessoais, sessões demonstrativas e compilações estatísticas de dados – misteriosamente se recusam a sobreviver quando testadas no laboratório sob o escrutínio do cientista ou após uma análise quantitativa mais detalhada.

Uma das grandes armas da ciência contra o charlatanismo é justamente a possibilidade de repetirmos certo experimento quantas vezes desejarmos. Os cientistas não precisam “acreditar” nos resultados de outros cientistas; basta repetir o experimento em seu próprio laboratório sob condições idênticas, e os mesmos resultados devem ser encontrados. Caso eles não sejam encontrados, das duas uma: ou você errou na repetição do experimento e seu colega está de fato correto, ou seu colega errou e seus resultados devem ser abandonados.

Eis aqui um exemplo, a “descoberta” da fusão fria, a produção de energia a partir da fusão de núcleos atômicos a temperaturas normais. O surpreendente é que, segundo a física convencional, o processo de fusão nuclear ocorre a temperaturas e pressões altíssimas, por exemplo, no interior do Sol ou na infância do Universo. Em 1989, Stanley Pons e Martin Fleischmann, dois cientistas de renome, chocaram a comunidade científica internacional ao anunciarem a descoberta da fusão nuclear à temperatura ambiente.

(Essa ilustração não faz parte do livro)
O trítio e o deutério, dois isótopos do hidrogênio, se fundem no interior das estrelas para produzir o hélio. 

Sendo um resultado capaz de revolucionar a produção mundial de energia, vários grupos imediatamente tentaram reproduzir os achados de Pons e Fleischmann. Após alguns alarmes falsos, ficou claro que fusão nuclear à temperatura ambiente é impossível. Os resultados de Pons e Fleischmann, não podendo ser reproduzidos, tiveram de ser abandonados.

Essa história tem várias morais. Uma delas é que os cientistas também podem cair no conto do vigário. Mas só por algum tempo! Descobertas que não podem ser reproduzidas são descartadas. Outra moral é que os cientistas devem ser mais cautelosos com a divulgação de suas descobertas pela mídia. Ainda mais relevante para a nossa discussão, os cientistas não são a priori fechados a fenômenos “estranhos”, apenas não aceitam fenômenos que se recusam a ser reconfirmados no laboratório.

Seria realmente fascinante se houvesse uma força desconhecida que pudesse influenciar nosso comportamento (ou pelo menos indicar tendências) a partir de um arranjo cósmico em que nós, como indivíduos, participássemos ativamente, uma espécie de astronomia personalizada.

Mas, para mim, mais fascinante ainda é seguir os passos de outros cientistas e dedicar toda uma vida ao estudo dos fenômenos naturais, armado apenas com a inspiração e razão. Ao compreendermos um pouco mais sobre o mundo à nossa volta, estaremos, também, compreendendo um pouco mais sobre nós mesmos e sobre nosso lugar neste vasto e misterioso Universo."
Saulo Alves de Oliveira