“Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus.Por isso quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação.Porque os magistrados não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas para os que fazem o mal. Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás o louvor dela; porquanto ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador em ira contra aquele que pratica o mal.Pelo que é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa da ira, mas também por causa da consciência.Por esta razão também pagais tributo; porque são ministros de Deus, para atenderem a isso mesmo.Dai a cada um o que lhe é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra.”Romanos 13.1-7
Eu vivi parte da minha infância,
toda a minha adolescência e juventude e parte da minha vida adulta sob o regime
da ditadura militar que se implantou no Brasil a partir de 1964.
Lembro-me muito bem que, evocando-se
o texto acima, as pessoas eram compelidas, ou doutrinadas na igreja que eu frequentava,
a não falar mal – ou, de modo mais ameno, protestar – contra o governo. Ademais,
havia o medo de ser taxado de subversivo. Aí as coisas poderiam ficar
complicadas.
Lembro-me também que havia uma
certa aversão à política e as pessoas que por acaso se candidatavam a algum
cargo eletivo só o faziam pelo partido que apoiava a ditadura, isto é, ARENA (Aliança
Renovadora Nacional), que, em 1980, foi sucedido pelo PDS (Partido Democrático
Social).
Entretanto, o que é que alegavam
naquela época? Que “... não há autoridade que não venha de Deus; e as que
existem foram ordenadas por Deus”. Portanto, “... quem resiste à autoridade
resiste à ordenação de Deus...”. E os generais ditadores certamente foram
ordenados por Deus.
Tempos depois, para nossa
satisfação, as coisas mudaram e hoje os evangélicos podem se candidatar livremente.
Acredito que quase todos os partidos, se não todos, contam com evangélicos em
seus quadros.
Hoje, felizmente, nós vivemos em
um regime democrático e qualquer pessoa pode falar mal e protestar contra o
governo. Até dizer que a presidente Dilma é um anticristo – não “o” anticristo,
obviamente –, como disse um conhecido pastor deste estado.
Todavia, o texto bíblico ainda é
o mesmo. E por que agora se pode protestar contra o governo?
Porque o mesmo texto – dizem os protestadores
– ainda afirma que “... os magistrados
não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas para os que fazem o mal”.
E, como o governo atual, ele próprio – tal qual o anterior também –, está apoiando
o mal, ao propor ou apoiar medidas que contrariam a Bíblia ou os pontos de
vista dos cristãos, os protestos contra o governo hoje se justificam e são
legítimos.
Acontece, no entanto, que a
ditadura não só apoiava medidas que contrariavam a Bíblia. Ela própria
executava ações que contrariavam a Bíblia. Afinal de contas, naquela época vários
opositores do governo foram sequestrados, presos, torturados e muitos foram
mortos ou desapareceram e até hoje os familiares não sabem onde estão seus
corpos. Todavia, se alguém puder me provar que sequestrar, torturar, matar e
sumir com corpos humanos está de acordo com a Bíblia, eu me calo e retiro este
comentário do meu blog.
Bom, em qual contexto foi escrito
o texto citado no início?
Pessoalmente, eu não vejo com
muita simpatia essa prática de citar contexto histórico para interpretar certos
textos bíblicos, pois muitos usam esse argumento para dar a interpretação que
melhor lhes convêm. Alguns também costumam dizer “Porque no grego ou no hebraico ou no aramaico tal
palavra quer dizer isso e aquilo” e mudam realmente o sentido do que está
escrito em português.
Eu acho que, se a Bíblia é a
palavra de Deus, não deveria de modo algum haver necessidade de se entender o contexto
histórico nem de se recorrer a línguas antigas para interpretá-la, aliás, eu
julgo que a Bíblia não deveria precisar de interpretação, mas ser clara e
transparente para o entendimento de quaisquer pessoas, leigos ou doutores.
Eu sou brasileiro, não falo grego
nem hebraico ou aramaico. Então, para entender as doutrinas bíblicas eu preciso
aprender tais idiomas em suas versões antigas?
Eu necessito ler a Palavra de
Deus em meu idioma nativo exatamente como originalmente inspirada por Deus. E essa
preocupação não cabe a mim, mas a Deus, seu autor e inspirador.
A Bíblia não é um livro comum
escrito por um grande filósofo. Não é este o entendimento de todos os cristãos?
Não foi Deus que a inspirou? Não teria Ele o poder de fazê-la perpassar intacta
ao longo dos anos, conforme o original, inclusive nas suas traduções para os
diversos idiomas?
Eu entendo que, se Deus a inspirou
e tem o controle de tudo, a Bíblia deveria estar escrita, em qualquer que seja
o idioma, de modo tal que todos a lessem e a entendessem exatamente da mesma
forma, sem necessidade de recorrer ao grego, hebraico, aramaico ou contexto
histórico. Caso contrário, a compreensão da Bíblia em toda sua plenitude ficará
reservada apenas aos grandes doutores, teólogos ou exegetas. Não ao homem comum,
como este beócio semiaprendiz de
escritor, que vos incomoda com este comentário elementar.
Foi só uma divagação. Voltemos ao
contexto histórico.
O apóstolo Paulo escreveu a
epístola aos romanos entre os anos 57 e 58 da era cristã, por ocasião da sua terceira
viagem missionária. Ele estava visitando a cidade de Corinto quando a redigiu.
E quem era o imperador romano naquela
época? O Sr. Lúcio Domício Enobarbo,
mais conhecido como Nero Cláudio César Augusto Germânico, ou simplesmente Nero.
Nero começou a governar no ano 54
da era cristã, aos dezesseis anos de idade, e seu reinado durou até o ano 68,
quando suicidou-se após um golpe de estado, que teve, segundo os historiadores,
o apoio do senado romano.
Dizem que os primeiros anos de
seu reinado foi um período de boa administração. No entanto, segundo os
historiadores, Nero envenenou seu meio-irmão, ou primo, Britânico em 55,
ordenou o assassinato de sua mãe em 59, mandou matar sua primeira esposa Cláudia
Octávia em 62, provocou com um pontapé a morte de sua outra esposa Popeia
Sabina, que estava grávida, e promoveu uma cruel perseguição contra os
cristãos.
É verdade que a maior parte dos
fatos relatados acima ocorreu depois que o apóstolo escreveu sua epístola, porém,
como cidadão romano que era, certamente Paulo tinha conhecimento de que Nero
não era um cidadão do bem. E ele escreveu esse ensinamento exatamente para os
romanos que viviam diretamente sob o jugo de Nero.
Além disso, o Velho Testamento
está repleto de líderes religiosos e políticos que foram ordenados por Deus, os
quais cometeram deslizes gravíssimos e até crimes horrendos. Vou citar apenas quatro
dos mais conhecidos e festejados: Abraão, Moisés, Josué e Davi. Hoje, se vivo
fosse, com certeza Moisés seria julgado por crimes contra a humanidade. E
certamente Paulo conhecia suas histórias muito bem.
Portanto, não me parece que Paulo
quis dizer aos romanos que somente os magistrados do bem foram ordenados por
Deus, mas todos. Ele foi claro e direto: “...e as [autoridades] que existem foram ordenadas por Deus.” As
autoridades, por sua vez, devem fazer o bem, se não o fazem, aí é outra
história. Vou usar a mesma argumentação ridícula que muita gente usa quando não
quer se comprometer ao ouvir críticas a algum líder religioso que age de forma indevida:
“Isso é com Deus, se Ele o colocou lá, a Ele cabe tomar providências”.
Se alguém ainda tem alguma dúvida
acerca do que Paulo pretendeu ensinar aos romanos, leia Tt. 3.1,2. A epístola a
Tito foi escrita possivelmente nos anos 65 ou 66, quando o apóstolo já sabia
muito bem quem era Nero.
Leia também Ex. 22.28; Ec. 10.20;
At. 23.5; 1 Pd. 2.11-17.
Podemos não concordar com Paulo,
e, ao invés de tentar contornar uma situação que está clara na Bíblia, deveríamos
ser mais honestos e afirmamos claramente: “Não concordo com Paulo, isso não se
aplica aos nossos dias.” E este não é o único caso.
Para concluir e deixar clara
minha opinião.
Devemos respeitar todas as autoridades,
no entanto temos o direito e devemos protestar ou criticá-las quando suas
atitudes agredirem a moral, a justiça e os direitos de todos os cidadãos, sejam
tais autoridades de direita ou de esquerda, na democracia ou na ditadura – que alguns
querem ver de volta ao Brasil, porém tomara que isso jamais aconteça –, quer
sejam simpáticas ao cristianismo ou não, ou a quaisquer outras religiões.
Saulo Alves de Oliveira
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