Por
Saulo Alves de Oliveira
Parece que estou ouvindo o monge medieval gritar “queimem-no na fogueira!” ou “estiquem-no no ‘Balcão da Tortura’, até que suas articulações se partam e seus membros sejam arrancados do tronco!” Ou ainda o sacerdote veterotestamentário incitar a turba “apedrejem-no até a morte!”
Recentemente, o pastor Ed René Kivitz fez uma afirmação que causou o furor dos meios evangélicos fundamentalistas. Alguns dos “santos”, exatamente aqueles que têm uma reserva especial no Céu e que lá chegarão na frente de todos os outros, lançaram-no no inferno com alma e corpo, não lhe tirando sequer as roupas e os sapatos.
E qual o motivo de toda essa ira “santa”? Porque, ao falar sobre a questão da homossexualidade, ele disse que a Bíblia precisa ser atualizada. (sic)
No meu ponto de vista, um equívoco do pastor Ed René Kivitz. A Bíblia não precisa e não deve ser atualizada e por um motivo muito simples.
Se qualquer pessoa julgar inadequado um texto bíblico para os dias atuais – imagine daqui a 100, 200... 500 anos! – e resolver atualizá-lo para conformar seu conteúdo a uma situação do nosso tempo, daqui a alguns anos nós teremos um outro livro, não mais a Bíblia.
Talvez algo parecido, isto é, atualizar ou modificar a Bíblia para adequá-la ao entendimento de líderes religiosos, aconteceu nos primeiros séculos do cristianismo.
Segundo o Dr. Bart D. Ehrman, especialista em Novo Testamento, igreja primitiva e manuscritos antigos – autor do livro O que disse Jesus? O que Jesus não disse? –, alguns estudiosos acreditam que os versículos 34 e 35 do capítulo 14 de 1 Coríntios não foram escritos por Paulo, mas foram acrescentados por copistas como uma espécie de nota marginal, portanto não faziam parte da epístola original de Paulo. Tanto é que em alguns manuscritos essa anotação (versículos 34 e 35) aparece depois do versículo 33 e em outros aparece depois do versículo 40. Infelizmente, sabe-se que não existem os originais dos livros da Bíblia, mas cópias de cópias de cópias de cópias... portanto, infelizmente não podemos confrontar o que temos hoje com a versão original. Tal fato, a meu juízo, é extremamente prejudicial, sobretudo se queremos conhecer o que de fato saiu da pena dos reais escritores da Bíblia.
Como havia, nos primórdios do cristianismo, uma grande polêmica acerca da participação das mulheres nas igrejas, tais copistas, favoráveis à discriminação das mulheres, teriam acrescentado essa nota que depois foi repassada como sendo de autoria de Paulo, o que lhe conferia autoridade apostólica. Realmente, parece ter sentido essa observação, pois, se os versículos 34 e 35 forem retirados do contexto, em nada prejudica o tema que Paulo tratou no capítulo 14.
Portanto, o que se faz necessário é entender que alguns textos bíblicos foram escritos para um determinado povo, em um determinado tempo, em um determinado contexto e não se pode pretender que as pessoas vivam hoje segundo as regras que eram válidas para aquele tempo e circunstância.
Três exemplos do Velho Testamento:
1 – Se uma mulher, para defender seu marido em uma briga com outro homem, pegasse o agressor pelos testículos, mandava a Lei que sua mão fosse decepada (Dt. 25. 11, 12). Algo bárbaro e inaceitável, e com toda a razão, nos nossos dias. Mas não é necessário retirar ou atualizar tal texto para entendermos que essa atitude é totalmente inaceitável no estágio atual da civilização humana.
2 – A Lei determinava que as mulheres só tinham direito à herança se não existissem herdeiros homens (Nm. 27. 8). Acho que tal princípio é contrário às leis de quaisquer países civilizados nos nossos dias.
3 – “Se alguém ferir seu escravo ou escrava com um pedaço de pau, e como resultado o escravo morrer, será punido; mas, se o escravo sobreviver um ou dois dias, não será punido, visto que é sua propriedade” (Ex. 21. 20, 21). Não se espante, isto está na Bíblia, na Lei Mosaica, ou seja, na Lei que Deus deu a Moisés para orientar a vida do povo de Israel. Se o dono espancasse seu escravo e o escravo morresse debaixo de açoite, o dono seria punido. Todavia se o escravo ficasse apenas respirando, arquejando, quase morto, em consequência do espancamento, e morresse somente 24 ou 48 horas depois, o dono do escravo não seria punido, pois o escravo, pasmem, era sua propriedade. Havia Seres Humanos e seres humanos! A Lei, portanto, admitia que um Ser Humano fosse dono de outro ser humano, ou seja, admitia a escravidão e, sob certa circunstância, livrava o senhor, cuja culpa era evidente, da responsabilidade pela morte do escravo causada pelo próprio senhor. Penso que não é necessário dizer nada sobre a incompatibilidade dessa lei com o progresso da civilização.
Existem muitos outros casos semelhantes, ou até piores, como os apedrejamentos, mas acho que esses três exemplos são suficientes. Tenho certeza, porém, que não falta quem apresente justificativas para todos eles.
E no Novo Testamento, há algum caso que foi escrito para um determinado tempo e circunstância? Sim, já foi citado um exemplo acima. Trata-se de 1 Co. 14. 34, 35, reproduzido abaixo.
As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei.
E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja.
Admitamos que o texto de 1 Co. 14. 34, 35, diferentemente do que alegam alguns estudiosos, realmente seja de autoria do apóstolo Paulo.
Algumas pessoas tentam justificar tal ordenança e para isso fazem um enorme contorcionismo para dizer que Paulo não disse o que ele disse, mas o mandamento é claro: no tempo de Paulo as mulheres não podiam falar nas igrejas e, evidentemente, não podiam assumir funções ou cargos de liderança que fossem exercidos nas igrejas.
Há quem afirme que na época de Paulo, na igreja de Corinto, havia uma enorme confusão durante as reuniões ou cultos (cf. 1 Co. 1. 10, 11; 14. 26, 40), dessa forma o apóstolo estava colocando ordem no ritual confuso daquela igreja.
Há quem afirme também que o silêncio das mulheres era uma questão cultural dos gregos e, para não chocar os novos conversos da Grécia, Paulo deu aquela instrução.
Todavia, qualquer que seja a explicação, fica evidente que tal ordenança era para aquela época e para aquela circunstância. É totalmente fora de propósito pretender colocá-la em prática nos dias atuais, a não ser que se viva em uma sociedade extremamente fundamentalista como, talvez, os islâmicos extremistas, judeus ultraortodoxos ou mesmo cristãos radicais, e cujas mulheres aceitem, sem questionar, o julgo masculino.
Na prática, portanto, as mulheres das igrejas cristãs protestantes de hoje não se submetem a esse mandamento de Paulo, ou dos copistas que, segundo alguns estudiosos, o acrescentaram.
Há um outro ensinamento do Novo Testamento que não é praticado nos nossos dias, não porque agride ou discrimine pessoas ou um grupo social, pelo contrário, mas porque ninguém está disposto a abrir mão daquilo que tem, ou seja, dos seus bens, apesar de ter sido ensinado pelo próprio Jesus e praticado pelos primeiros cristãos, que viveram o genuíno comunismo na acepção mais pura do termo, conforme registrado em At. 2. 44, 45:
Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um.
Certa vez, um jovem muito rico procurou Jesus e perguntou-lhe: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna"? Jesus, após algumas considerações iniciais e diante das respostas do jovem, foi decisivo: “Se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me".
Algumas pessoas gostam de relativizar alguns ensinamentos bíblicos e, nesse caso, há quem afirme “mas essa ordenança de Jesus não era para todos os ricos, era específica para aquele jovem”. Não é verdade. As palavras de Jesus eram para todos os ricos. Pode-se concluir do desfecho daquele encontro.
Após o jovem afastar-se triste, porque tinha muitas riquezas, Jesus concluiu: “Dificilmente ‘um rico’ entrará no Reino dos céus”. Ele não disse: “Dificilmente ‘este rico’ entrará no Reino dos céus” (Mt. 19. 23).
Esse texto bíblico não precisa ser atualizado ou contextualizado. Ele simplesmente não é ensinado e muito menos observado nos nossos dias.
Não se vê hoje ninguém ensinando ou recomendando que se faça como Jesus ensinou ao jovem rico, muito menos praticando. O máximo que se ensina é que o cristão não deve ser apegado aos bens materiais, apesar de, no caso de alguns pastores, nem mesmo isso é observado. São os tais milionários, riquíssimos, os donos das igrejas.
Qual a interpretação que eles dão a essa passagem bíblica? Tente lhes perguntar, se for bem recebido.
Tal atitude é possível, isto é, vender tudo e dá aos pobres? Sim, todavia é altamente improvável que aconteça. Eu nunca ouvi falar de nenhum caso nos meus anos de vida.
(Dizem que um homem muito rico, filho de um príncipe indiano, que viveu entre os séculos V e VI antes de Cristo, abandonou toda a riqueza e foi viver na pobreza, passou a divulgar uma forma simples de viver, sem pompas e sem apegos aos bens materiais. Esse homem chamava-se Siddhartha Gautama, e é conhecido hoje pelo nome Buda, o fundador do budismo.)
Portanto, a Bíblia não pode, não deve, nem precisa ser atualizada, sob pena de, após algum tempo, estar totalmente descaracterizada.
O que precisa ficar claro é que algumas ordenanças são incompatíveis com o desenvolvimento da civilização humana e outras dependem de um completo desprendimento das pessoas quanto às coisas materiais, o que me parece, conhecendo a vaidade dos seres humanos e o seu insaciável desejo de ter cada vez mais, muito difícil, quase impossível, na prática.
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