Existem diversas histórias bíblicas que há muito tempo me deixam estupefato. E, quando as analiso sob a ótica de um Deus justo, infinitamente bom e imutável, não encontro explicações plausíveis para tais histórias. São muitos e muitos casos, porém “en passant” eu vou citar apenas três.
Abraão, o grande Patriarca, mentiu em duas ocasiões diferentes ou, sendo mais condescendente, omitiu seu verdadeiro grau de parentesco com Sara, porquanto disse apenas que ela era sua irmã – se bem que, sendo filhos do mesmo pai mas de mães diferentes, de fato Sara era sua meia-irmã, porém também era sua mulher (Gn. 12:13-20 e Gn. 20.1-18). Eu não quero discutir as razões que o fizeram proceder daquela forma. O que eu quero ressaltar é o fato do Faraó e Abimeleque terem sido castigados porque a tomaram por mulher. E o mais grave: suas famílias também o foram. Talvez haja uma brecha para compreender a atitude de Abraão, mas não para a punição do Faraó e de Abimeleque e, em especial, suas famílias. Eu sempre me pergunto: por que Abraão – que não disse a verdade e valeu-se de meios, pelo menos, reprováveis –, saiu ileso das duas situações, além de rico?
Jacó, neto de Abraão, e pai do povo de Israel, perpetrou uma das maiores fraudes de toda a Bíblia, talvez a maior delas, e fez tudo com a conivência da sua mãe, Rebeca. Enganou o próprio pai, velho e cego, valendo-se de um embuste sórdido e condenável sob todos os aspectos (Gn. 27:1-29). E ele não o fez por inocência, pois tinha consciência do seu gesto vil! (Gn. 27:12). Eu sempre me pergunto: por que Isaque, seu pai, ao descobrir a farsa, não anulou a bênção de Jacó, transferindo-a em seguida para Esaú, já que a atitude do segundo filho teve como fundamento uma mentira repugnante?
Davi, o “eterno” rei de Israel, tão decantado por suas proezas, cometeu alguns crimes. Não vou nem citar o caso de Urias e Bate-Seba, pois a história é bem conhecida. Quero me referir a um episódio que está lá entre as guerras que ele empreendeu e que talvez as pessoas leiam e não percebam o grau de crueldade envolvido. “E Davi jarretou a todos os cavalos dos carros [dos seus inimigos], reservando apenas cavalos para cem carros” (II Sm. 8:4). Jarretar é cortar importantes tendões e nervos que há na articulação das pernas posteriores do cavalo e que têm um papel fundamental na locomoção do animal. Com os jarretes cortados o cavalo não pode nem ao menos andar. Certamente não é um absurdo admitir que aqueles animais morreram de fome e de sede prostrados no chão, sangrando talvez por vários dias, ou então foram devorados vivos por predadores. Portanto, eu pergunto: mesmo sendo uma prática comum em tempo de guerra naquela época, não foi um ato de extrema crueldade?
No entanto eu quero me deter em uma quarta história, a qual eu reputo como sendo uma das mais terríveis. Ela diz respeito a Moisés, o grande legislador do antigo Israel.
Segundo a Bíblia (Nm. 25:1-3), os israelitas estiveram acampados num local chamado Sitim poucos antes de entrarem em Canaã e lá se relacionaram sexualmente com mulheres moabitas, que também os “convidaram” a prestar culto aos seus deuses. Faço questão de destacar a palavra “convidaram”, pois isso quer dizer que o povo de Israel não foi obrigado a qualquer prática contrária à sua fé, mas o fez espontaneamente, porquanto eram adultos capazes de distinguir o direito do esquerdo.
Por esse motivo, isto é, por que as moabitas “seduziram” os israelitas a seguir outros deuses, Moisés recebeu posteriormente do Senhor, como última missão de sua vida, a incumbência de vingar-se dos moabitas. Em Nm. 31:1, a Bíblia refere-se aos midianitas, mas, pelo contexto, deduz-se que eram os mesmos moabitas com os quais os israelitas se relacionaram em Sitim.
Todavia, independentemente de qualquer distinção entre midianitas e moabitas, o que interessa é que Moisés destacou um exército de 12.000 homens e o mandou investir contra os midianitas e o resultado é que os soldados israelitas mataram todos os homens adultos de Mídiã e queimaram todas as suas cidades e acampamentos. Entretanto, no que pareceu ser um lampejo de lucidez, os comandantes do exército decidiram preservar todas as mulheres e crianças.
Moisés, no entanto, quando tomou conhecimento do ocorrido, indignou-se contra os oficiais do exército que voltaram da guerra. Na realidade não foi uma guerra, foi um verdadeiro massacre, porquanto nem um guerreiro israelita morreu (Nm. 31:48, 49). Moisés então ordenou aos seus soldados que matassem todos os meninos (sic) – os “homens” que restaram – e também todas as mulheres, exceto as virgens, o que incluía logicamente as crianças do sexo feminino. Como os soldados israelitas fizeram para identificar todas as virgens? Não faço a menor ideia.
É muito provável que muitas pessoas leiam essa história e não parem para meditar na barbárie que ela encerra. Aquelas mulheres e crianças evidentemente já estavam traumatizadas pelo que presenciaram, isto é, a morte brutal de seus pais, maridos, irmãos ou filhos maiores e pela perda de todos os seus bens. Então chegaram os soldados de Israel armados com espadas e lanças e investiram contra elas e seus filhos. Eu imagino o terror e o desespero de todas aquelas criaturas.
Talvez uma mulher correu com seu filho e foi traspassada pela lança arremessada por um dos soldados e em seguida a criança teve a cabeça decepada pela espada de outro algoz.
Quiçá uma outra mulher tentou se esconder com seu filho recém-nascido e foi puxada pelos cabelos e em seguida cortada ao meio pela espada do seu agressor. É perfeitamente razoável admitir que a criança pode ter sido simplesmente pisoteada, tendo o crânio esmagado pelos fortes pés do soldado, ou então foi jogada com força contra rochas existentes no local.
Parece que eu vejo os guerreiros brandindo suas espadas ao desferir os golpes e os corpos caindo à sua frente, mutilados e esvaindo-se em sangue. Parece que eu vejo os soldados israelitas totalmente banhados com o sangue de suas vítimas e, quem sabe?, felizes por estarem chacinando os seguidores de outros deuses. De acordo com Nm. 31:35, só as virgens poupadas somavam 32.000 pessoas, portanto não é uma ilação irresponsável admitir-se que naquele dia muitas dezenas de milhares de pessoas foram cruel e covardemente massacradas. Um espetáculo chocante e deprimente e que eu jamais gostaria de presenciar.
Em que pese a atitude dos homens e mulheres moabitas, há como justificar o que fez Moisés e seu exército? Para mim a resposta é um retumbante não. Não há, não houve e jamais haverá como justificar o assassinato de seres humanos indefesos, desarmados e, em especial, inocentes.
Eu tenho absoluta certeza de que qualquer estudioso cristão da Bíblia, não precisa ser um grande apologista, vai encontrar uma série de justificativas para todos os atos que eu citei. Entretanto, eu pergunto: se Deus é o mesmo sempre, há razão para o erro de hoje não ter sido erro no passado? Hoje, sob o ponto vista da moral, tais procedimentos são injustificáveis. Hoje, se vivo fosse, certamente Moisés seria julgado por crimes contra a humanidade.
Ou o meu senso moral é um delírio?
Saulo Alves de Oliveira
Muito bom, painho!!!
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